Mercado de bets: o lado obscuro dos jogos que afetam a saúde mental dos trabalhadores
Durante a Copa do Mundo, era comum os colaboradores nas empresas fazerem o famoso “bolão”, que consistia em apostas de valores módicos, cujo resultado por muitas vezes era o pagamento do churrasco para festejar os jogos. Hoje, essa prática outrora simples tornou-se um lucrativo negócio, e não englobam apenas as partidas esportivas, inclui-se de cassinos a jogos eletrônicos. O chamado mercado de bets (‘apostas’, em inglês) recebeu apenas em 2024 os valores brutos entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões ao mês, aponta um levantamento do Banco Central (BC).
Para se ter ideia, apenas no mês de agosto, segundo o BC, 5 milhões de cadastrados no programa Bolsa Família enviaram R$ 3 bilhões às essas empresas via Pix, meio de pagamento mais popular no país. “O presidente do BC, Roberto Campos Neto, declarou que o ticket médio de transferência às casas de aposta aumentou em 200% e já tem efeitos na inadimplência da população de baixa renda”, informa matéria do Meio & Mensagem.
Para tanto, o governo determinou que as bets autorizadas só poderão realizar suas transações por instituições financeiras ou pagamentos autorizados pelo BC, e os beneficiários do Bolsa Família não poderão usá-lopara tal. “Entendemos que o governo vem tomando algumas medidas de controle, principalmente da atividade irregular, e, no caso, essas medidas têm se mostrado adequadas”, pontua Rafaela Vitória, economista-chefe do banco Inter, à CNN.
Afastamentos por causa do vício em bets
O fato preocupante é que muitos trabalhadores além do prejuízo financeiro, estão prejudicando a saúde mental: o Ministério da Previdência Social declarou que cresceu em mais de 300% o número de trabalhadores afastados para tratamento psicológico em consequência do vício em jogos online, entre os anos de 2021 a 2023.
“O vício afeta o rendimento. A pessoa perde a sua atenção, diminui a entrega, atrasa a sua chegada ao trabalho. Há um aumento do que chamamos de absenteísmo. Porém,existe o amparo, não é como anteriormente, em que as pessoas eram recriminadas”, revela Cinthia Bueno, especialista em SST, ao SBT News.
Para Ricardo Pacheco, presidente da Associação Brasileira de Empresas de Saúde e Segurança no Trabalho (ABRESST),as pessoas afastadas podem ter direito ao recebimento do auxílio-doença, previsto no artigo 59 da lei 8.213/91 – Lei da Previdência Social, após perícia no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e for constatado o problema.
“Entretanto,até hoje, não existem decisões do INSS ou da Justiça sobre o pagamento de auxílio-doença para quem é acometido do vício em jogos eletrônicos, já que não era considerada como uma doença.Então, a partir do momento em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declara esse transtorno como uma patologia, acredito que possa sim ser estendido o benefício”, endossa o médico, ao site Administradores.
A informação que Pacheco se refere é a decisão da OMS, em 2022, em incluir o vício em jogos eletrônicos (game disorder, em inglês) como uma doença classificada no CID – 11 (Código Internacional de Doenças).
Conscientização ao trabalhador
Como dito, os trabalhadores que sofrem desse problema podem buscar ajuda e as empresas estão incluindo o tema por meio de iniciativas, como material informativo, rodas de conversa ou mesmo em seus programas de saúde mental (terapia online e in company). O Serviço Social da Indústria (SESI) está desenvolvendo um conteúdo informativo para orientar trabalhadores e lideranças sobre os riscos da dependência de jogos e malefícios deste comportamento.
“É uma questão muito séria e o momento é para discuti-la com bom senso. Há um número enorme da população brasileira se endividando e adoecendo, o que vai gerar ônus ao Estado”, frisa Cláudio Bier, presidente da Federação da Indústria do Rio Grande do Sul (FIERGS).
Para Hermano Tavares, psiquiatra e coordenador do ambulatório integrado dos Transtornos do Impulso (AMITI) do Instituto de psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Ipq-HC-FMUSP), é preciso educar a população sobre o propósito do jogo, que não é a vitória recorrente.
Ou seja, a possibilidade de perder tudo que com esforço conquistou é imensa, alerta o especialista, em entrevista ao Futuro da Saúde: “Jogo não é uma forma de investimento, não é complemento de renda. O azar não é má sorte, é a aleatoriedade necessariamente embutida na previsão. Não depende dos esforços do jogador, tem sempre um elemento de aleatoriedade que participa em graus variáveis”, salienta.
Preparo profissional
Outro fato preocupante por conta do vício em bets é o preparo dos profissionais de saúde no atendimento. Segundo pesquisa da organização Impulso Gov, divulgada pela Folha de S. Paulo,com 2.172 profissionais atuantes no Sistema Único de Saúde (SUS) de todas as 27 unidades da federação, mostrou que 55,2% não se sentiram preparados para lidar com casos de vício em bets.
Na outra ponta, 49,4% demonstraram que houve um aumento expressivo de tais eventos, ou seja, sintomas de prejuízos da saúde mental por conta de apostas online. “A atenção primária é a porta de entrada da população ao SUS, e essa percepção é extremamente relevante para apresentar um panorama do cenário atual e entender o nível de preparo que esses profissionais relatam para lidar com essas questões”, conclui João Abreu,diretor-executivo da ImpulsoGov, à revista Fórum.
Foto: Sérgio Lima – Poder360