Polêmica sobre serviços de mototáxi descortina a realidade de trabalhadores que usam moto como meio de sobrevivência

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Quem circula pelas grandes metrópoles já observou a quantidade cada vez maior de motocicletas, que atuam majoritariamente com entregas. Agora, essa demanda ganha um novo e (polêmico) capítulo, haja vista notícia recente da oferta em São Paulo de serviços de mototáxi por aplicativos.

Em 2023, a prefeitura de São Paulo criou um Grupo de Trabalho para analisar esse uso do mototáxi. Após mais de dez reuniões, em que foram discutidos dados e cenários, a conclusão foi de que a implementação deste modelo de transporte seria um grande risco para a saúde pública.“O relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho aponta que ao motociclista realizar muitas viagens ao longo do dia, o risco de acidentes aumentaria, o que colocaria em perigo a vida dele mesmo, dos passageiros e de todos os outros envolvidos no trânsito”, frisa matéria da CNN.

Em nota, as principais plataformas, Uber e 99, contestaram o inquérito instaurado pela Polícia Civil de São Paulo, a pedido pela prefeitura, em janeiro, para investigar possíveis crimes de desobediência, em relação a essa prestação de serviço. Ao O Globo, as empresas salientam que “a ação configura uma perseguição ilegal aos aplicativos e é uma cortina de fumaça da gestão de Ricardo Nunes (MDB) para não reconhecer a garantia da oferta de mototáxi no município”.

 

Mototáxi e “uberização”

 

Segundo o Dossiê das Violações dos Direitos Humanos no Trabalho Uberizado, resultado de uma pesquisa da Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DEDH), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), empreendida em 2023 com 200 motofretistas do município, revelou que com essa modalidade de trabalho trouxe uma diminuição salarial e de proteções legais de toda a categoria de entregadores.

“É preciso qualificar essa discussão, do ponto de vista da cidadania, e pensar sobre o direito de viver dignamente e prover dignidade, como está posto na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Refletir sobre como nós, enquanto sociedade, toleramos esse arranjo laboral”, alerta Silvia Santiago, diretora-executiva da DEDH e uma das autoras do dossiê, ao Jornal da Unicamp.

O estudo abrangeu trabalhadores que têm como principal (ou única) fonte de renda as corridas via aplicativos e também àqueles que não tem os apps como prioridade. Em números, dos entrevistados, 90% eram homens e quase 60% eram pessoas pretas.

Para Ludmila Abílio, pesquisadora visitante da DEDH e coautora do dossiê, com o monopólio das empresas por aplicativos, houve também a expansão de um novo modo de comportamento de consumidores e trabalhadores, a “dataficação”, ou seja, as atividades tornaram-se dados, utilizados para definir estratégias operacionais a partir do cruzamento de informações, permitindo, por exemplo, criar bonificações, definir preços e penalizações.

“Primeiro, jogaram o valor da entrega para o alto, para quebrar todas as concorrentes, o que conseguiram. Agora, as plataformas têm meios técnicos de organizar 100 mil, 1 milhão de trabalhadores, popularizando e barateando o serviço. Portanto, não há necessidade de determinar uma jornada, o que torna qualquer regulação desnecessária. Para o direito e para o Estado, isso é um desafio”, destaca a socióloga, ao mesmo jornal.

 

Índice preocupante

 

Como visto, o serviços de mototáxi traz outras questões, por trás de capacetes e números, são vidas que correm risco em ruas e avenidas pelo país, e os números assustam: o número de acidentes com motos no Brasil disparou em 2024, gerando mais de 300 mil atendimentos na rede pública, segundo o Ministério da Saúde.

Para se ter uma ideia, no Rio de Janeiro, os atendimentos ambulatoriais saltaram de 2.600 em 2023 para mais de 12 mil até novembro de 2024, impactando hospitais e esgotando recursos, como estoques de sangue. Essa alta nos acidentes acompanha o crescimento no mercado de motos, que registrou o melhor desempenho dos últimos 17 anos, com um aumento de 18% nas vendas em relação a 2023, frisa reportagem do SBT News.

Entre os dias 18 e 19 de janeiro, 83 vítimas de acidentes com motos foram atendidas no Hospital Estadual Alberto Torres, em São Gonçalo, sobrecarregando a unidade. “É urgente a necessidade de conscientização para reduzir os acidentes, que têm impacto direto na saúde pública e na qualidade de vida das vítimas. A situação demanda atenção e autoridades e da população”, endossa Felipe Furtado, médico do centro de trauma, ao SBT.

 

Regramentos

 

Para piorar esse cenário, há ainda muitas lacunas no que se refere aos regramentos e responsabilidades diante de acidentes e periculosidade a que trabalha e utiliza (como passageiros) motocicletas. O consenso é de responsabilidade das empresas a salvaguarda da saúde e segurança desses trabalhadores, e também cabe a interpretação jurídica para solucionar tais casos de acidentes na atividade laboral dessas pessoas.

Segundo matéria do ConJur, em 2014, foi editada a Portaria nº 1.565 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a qual aprovou a inclusão do anexo 5 na Norma Regulamentadora 16 (NR-16), passando a prever quais as atividades laborais seriam consideradas como perigosas em razão do uso de motocicletas, dando o direito ao recebimento de um adicional de 30% sobre o salário percebido, o qual integra todas as verbas de natureza salarial.Ocorre que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em decisão proferida na Ação de nº 0018311-63.2017.4.01.3400, entendeu que a edição da portaria não obedeceu a todas as etapas de estudo e regulamentação de normas inerentes à saúde, segurança e condições gerais de trabalho.

“Diante disso, diversas associações vêm ingressando com ações judiciais contra a portaria e obtendo decisões favoráveis à suspensão da eficácia da norma no âmbito de suas representações. Assim, até que sobrevenha nova norma regulamentando o adicional de periculosidade em atividades que possuam o uso de motocicletas, tais entidades estão desobrigadas ao pagamento de tal verba e seus funcionários seguem trabalhando sem o recebimento do adicional que lhe é de direito”, escreve Júlia Torreão, advogada de Coelho &Dalle Advogados, em artigo ao Conjur.

Foto: Freepik

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