Químicos lançam livro sobre conquistas na saúde do trabalhador
Até meados dos anos 1980, a saúde do trabalhador era um tema sob controle exclusivo dos empregadores. E o afastamento de doentes ou contaminados para tratamento médico não era comum em todas as empresas. Muito menos na fábrica da Ferro Enamel, em São Bernardo. Mesmo com queixas de fraqueza, da sensação de peso nas pernas, cãimbras, eles continuavam trabalhando, muitos deles envoltos em nuvens de pó de chumbo – a mesma poeira que impregnava os macacões e as máscaras que só enganavam, mas praticamente nada protegiam.
Em 1984, a situação foi relatada aos integrantes da recém criada Comissão de Saúde do Sindicato dos Químicos do ABC (Comsat). Acompanhados pelo médico Herval Pina Ribeiro, 50 operários foram levados para exames no Instituto Adolfo Lutz, em uma unidade do Sesi no bairro do Belém, em São Paulo, e também na rede pública de saúde. Índices de contaminação, bem acima do limite permitido pelo Ministério do Trabalho, foram confirmados em 31 deles.
O sindicato enviou então carta ao setor de RH da Ferro Enamel, que não aceitou os resultados dos exames e nem os pedidos de afastamento, chegando a chamar de mentirosos os sindicalistas, o médico do sindicato e os laudos laboratoriais. O jeito então foi pressionar por mais fiscalização e denunciar o médico da empresa no Conselho Regional de Medicina de São Paulo. Em agosto daquele mesmo ano, em assembleia, os trabalhadores reivindicaram o afastamento dos contaminados e alterações no processo produtivo.
Com a recusa dos patrões, todo o setor de produção entrou em greve por melhores condições de saúde no local de trabalho. O movimento ganhou destaque em jornais impressos, como Folha de S.Paulo, Jornal da Tarde, Diário do Grande ABC e até no Jornal Nacional. A paralisação, a primeira realizada ali até então, terminou com o recuo da empresa em audiência na Justiça, que se desculpou e concordou em modificar as condições de trabalho.
A luta dos trabalhadores tornou a produção mais limpa e segura, reduzindo as chances de desenvolver saturnismo – a contaminação por chumbo que pode provocar danos ao sistema nervoso central e periférico, que têm como sintomas fraqueza, irritabilidade, sonolência ou mesmo insônia, cansaço, dores de cabeça e nas articulações, além de gosto metálico na boca e perda da libido – aspecto esse que foi muito destacado na campanha de conscientização Chumbo mata e broxa. Mais do que isso, saíram fortalecidos para seguir lutando por melhores salários nas campanhas posteriores. Os acordos para indenização de quem sofreu contaminação, porém, só foram assinados após 16 anos.
Benzeno
A campanha vitoriosa é rememorada no livro Comsat – Químicos do ABC: 30 anos de luta pela Saúde (1984-2014), que o Sindicato dos Químicos do ABC lança hoje, 11 de setembro, em sua sede em Santo André (SP). A obra foi organizada pelo ex-presidente da entidade e primeiro coordenador da Comsat, Remígio Todeschini, o assessor de políticas públicas e sociais do sindicato, Nilton Freitas, e o atual secretário de saúde, condições de trabalho e meio ambiente e coordenador da Comsat, José Freire da Silva.
Em 237 páginas ilustradas com fotos e documentos da época, eles retratam lutas empreendidas entre 1984 e 2014, que refletiram na melhoria das condições de trabalho não só dos trabalhadores químicos do ABC como de muitas outras categorias em todo o país, e que influíram em políticas nacionais e também no exterior.
É o caso de uma explosão na antiga Petroquímica União, hoje Braskem, em 1992, no pólo petroquímico de Capuava. A ação do sindicato despertou em todo o Brasil a consciência para o risco da instalação de complexos industriais como esses na zona urbana e desencadeou processos normativos, tecnológicos e de gestão inovadores, como a NR-13 e a ratificação da Convenção 174 da OIT pelo Brasil.
Os trabalhadores fecharam a Petroquímica. Com apoio dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador e a fiscalização da prefeitura de Santo André (gestão de Celso Daniel), obrigaram as empresas do pólo petroquímico a discutir com sindicato diversas questões, como a exposição ao benzeno. Havia ali diversos casos de contaminação pela substância cancerígena, com os trabalhadores contando com auxílio-doença comum, inclusive de um trabalhador com leucemia, que morreu e veio a falecer.
Denúncias de contaminação por benzeno também levaram o sindicato às Indústrias Matarazzo, em São Caetano, onde havia muitos trabalhadores com leucopenia (redução da quantidade de glóbulos brancos no sangue) devido à exposição ao produto na fabricação do agrotóxico hexabenzeno de cloro, mais conhecido como BHC.
Depois de uma longa mobilização, trabalhadores, médicos e advogados do sindicato conseguiram a condenação civil e criminal dos donos da empresa e a interdição da fábrica pela Delegacia Regional do Trabalho. Só após 20 anos é que todos os trabalhadores contaminados foram indenizados.
A partir de campanhas de caça ao benzeno promovidas pelo sindicato, vieram discussões que levaram à criação da Comissão Permanente do Benzeno.
Mercúrio
Em 1987, na antiga Eletrocloro (atual Solvay Indupa), o sindicato detectou mais de 80 trabalhadores contaminados por mercúrio metálico, altamente volátil, que atinge o cérebro, causando distúrbios motores, emocionais e na memória. O médico da empresa foi denunciado por negligência. A greve dos trabalhadores, com repressão da tropa de choque, teve repercussão nacional. Como esse tipo de contaminação era pouco conhecido, o caso levou a medicina do trabalho a aprofundar pesquisas que continuam sendo feitas.
“Este livro é uma história de lutas, mortes e de adoecimento no trabalho, mas também uma história de vitórias que levaram à construção de políticas públicas em saúde e higiene do trabalho, meio ambiente e controle de riscos industriais, em âmbito regional e nacional, com repercussões na esfera internacional”, destaca o presidente do Sindicato, Raimundo Suzart, que prefacia a publicação.
Para Nilton Freitas, é o retrato de três décadas em que a ação sindical desnudou a prática do empregador de não revelar a real situação de risco e modificou até mesmo os processos de produção. “O mercúrio foi sendo restringido e há planos de ser substituído por outras substâncias. A indústria brasileira que utiliza benzeno, que estava muito atrasada, com mais de 2.500 contaminados no início dos anos 90, está mais segura e discute com trabalhadores e governo numa comissão tripartite”, avalia.
De acordo com Freitas, que é engenheiro na área de segurança do trabalho com especialização em saúde coletiva, nesses 30 anos os avanços são muitos. A saúde ocupacional se estendeu para fora das fábricas, para além dos trabalhadores e seus familiares, a indústria evoluiu e há normativas internacionais.
“Os desafios, hoje, incluem a insegurança no emprego. É preciso ratificar a Convenção 158 da OIT, contra a demissão desmotivada. E a contaminação, hoje, é por medicamentos, a que os trabalhadores recorrem para tratar problemas trazidos pela competitividade na vida e na fábrica, como ansiedade, depressão. E também por tecnologias novas, como a nanotecnologia, que ainda não foram devidamente estudadas quanto a seus riscos à saúde e ao meio ambiente”, diz Freitas.